2.5 Catando as cascas do arroz da terra
Quando acordei, ouvi o barulho suave de uma chuvinha fina. O frio do amanhecer convidou-me para ficar ainda mais tempo na rede. Levantei com movimentos leves e me preparei para minha saída no Recordatório. Estou em minha casa da serra. Esta casa foi construída por mim e meu ex-marido, na intenção de estarmos mais perto do lugar onde nasceram minha mãe e a minha avó. O Riacho das Pedras é uma pequena comunidade ligada à cidade de Redenção. Entre pedras, bananeiras e vales, residem um pequeno número de pessoas.
Na semana passada, a Prefeitura de Redenção colocou muita areia para tapar provisoriamente os buracos da estrada e com a chuva de ontem, ficou difícil de ir no meu carro (que eu chamo de Serginho). Decidi ir a pé e devagar, para ver se eu conseguia alguma peça para o Recordatório aqui por perto.
Saí de casa com muitos medos no peito. A cada saída para o Recordatório, devo me preparar para os diversos nãos que eu encontro e para os encontros com sentimentos profundos. A estrada estava ainda molhada, mas a chuva havia passado. Aos poucos, o céu foi tomado por um azul profundo e o sol pôde chegar mais forte. Já eram nove horas da manhã e o dia já corria bonito. Na estrada sem ninguém, fui avançando aos poucos e tentei acalmar minhas ansiedades quanto ao número de coletas que eu haveria de fazer. Afinal, no Recordatório o sim e o não já integram a ação.
Ouvi pessoas que conversavam energicamente e com mais alguns minutos de caminhada, vi os trabalhadores que carregavam o caminhão de bananas. Por aqui tem muita plantação de banana. Toda semana eles descem para vender na Ceasa ou mesmo em Redenção. Saudei os trabalhadores e continuei minha caminhada. O caminhão estava estacionado numa enorme área debaixo de um manguezal. Aquelas mangueiras são centenárias.
Na infância, eu, minhas irmãs e primos costumávamos brincar por ali. Ficava distante da casa do meu tio-avô e nos parecia um lugar secreto e misterioso. A sombra densa das mangueiras cria uma luz especial e transforma o lugar. Continuei na estrada e avistei a primeira casa depois de algum tempo.
Ao me aproximar desta casa, respirei fundo e tomei coragem para dar continuidade à ação. Observei que a maioria das portas estavam fechadas, mas a porta central estava meio aberta. Chamei a primeira vez: Ô de casa? E nada de resposta. Na segunda vez, aproximei-me e chamei novamente. Resolvi esperar com a minha ansiedade ao lado. Depois de um tempo (que para mim pareceu horas), uma jovem mulher apareceu na porta. Ela me disse: “Pois não?” e olhou-me de cima a baixo. Eu saudei com um bom dia e iniciei minha demanda. Confesso que eu estava um pouco nervosa e até gaguejei na pergunta sobre a fotografia mais antiga da casa. É que... eu... trabalho com fotografia e gostaria de saber sobre a fotografia mais antiga da casa de vocês... algo assim. A mulher me olhou e foi logo dizendo. Ah eu tinha umas fotografias antigas aqui das minhas filhas, mas já mandei para Redenção para recuperar. Não quero nada não viu... obrigada! Despachou-me na maior pressa. Não insisti, agradeci a atenção e continuei na estrada. No caminho, quando comecei a me criticar sobre o tom que eu havia tomado, a falta de firmeza nas palavras etc., avistei a próxima casa.
Ali não demorou para uma senhora aparecer na janela. Eu retifiquei minha abordagem e retomei a coleta: Bom dia, senhora. Me chamo Diana e estou pesquisando sobre fotografias. As senhoras têm fotografias antigas na sua casa? Ela foi rápida ao me responder que infelizmente não. Ela havia impresso várias fotografias e com o passar de pouco tempo apenas um ano todas as imagens desapareceram. A impressão havia sido de má qualidade e agora só tinha fotos no celular. Depois de ver as folhas em branco ela jogou o álbum fora com raiva. Diante de tal situação, eu concordei com ela que era um fato lastimável. Ela ainda acrescentou que agora nem os arquivos ela tinha mais pois confiou que já havia impresso e se desfez das imagens antigas no celular. Não quis insistir em outros tipos de fotografias então agradeci e sai.
Na casa vizinha morava uma antiga conhecida da minha família. Ao me ver na estrada, logo me saudou: Oi, Diana. Tudo bem? Eu retornei a saudação e ela prontamente me convidou para tomar assento em sua pequena e confortável varanda. Graça estava com uma grande bacia de alumínio nas pernas. Ali sentada, ela estava catando as cascas do arroz da terra. Aqui nesta comunidade se planta e se colhe arroz. Um tipo de arroz com um gosto específico e formato mais arredondado que aquele que encontramos nos supermercados da cidade. Tomei assento e conversei logo sobre fotografias. Ela me respondeu sorrindo que tinha uma fotografia de seus pais, mas que estava tão guardada que nem sabia se poderia ir pegar. Eu respondi que tudo bem e a conversa foi no rumo de saber notícias da minha família. Ela perguntou por minha mãe e minhas irmãs. Quis saber dos meus filhos e se tudo estava bem. Depois ela levantou-se e disse que iria buscar as fotografias. Eu fiquei feliz com sua decisão de buscar aquelas imagens e enquanto ela foi procurar, eu continuei o seu trabalho com o arroz.
Passei a catar as pequeninas cascas do arroz e a procurar aqueles que haviam resistido à máquina de debulhar o arroz. Naquele pequeno momento, veio-me à lembrança a minha avó, que adorava aquele arroz e sempre o tinha em sua casa. Aquela textura nas minhas mãos, aquele odor de palha e terra me fizeram voltar muitos anos atrás, quando eu era uma criança e ficava curiosa ao ver minha avó a catar, com toda paciência do mundo, cada pedacinho de casca do arroz.
A minha viagem no tempo foi interrompida com o retorno de Graça, trazendo nas mãos as fotos de seus pais e dos seus irmãos. Era uma fotopintura que estava sem moldura e ela guardava na intenção de recolocar a moldura de proteção, mas ainda não tinha dinheiro para tal. As fotografias estavam impressas num papelão e a sua foto com seus irmãos estava riscada com alguns desenhos aleatórios. Coisa de criança – ela me falou apontando os riscos de canetas nas imagens.
Mas ali estavam os seus pais e ao olhar para aquele casal, lembrei-me imediatamente do olhar deles. Foi um casal conhecido na comunidade e faziam parte da igreja que meu tio-avô havia criado ali. Pessoas simples, mas cheias de amor e atenção com o próximo. A sua mãe, Dona Dolores, tinha um olhar tão meigo e encantador. O seu pai, o senhor Bernardino, era um homem forte que “lidava na roça” continuamente.
Eram pessoas simples e cheias de vitalidade. Á fotopintura com os irmãos era também muito simples. Os rostos pareciam com os modelos realmente, mas pude observar que os traços da pintura foram resolvidos com uma certa pressa e desatenção. Existem muitas qualidades de fotopinturas, que denunciam a qualidade daquele que executa as encomendas.
Depois de me apresentar as fotografias antigas, continuamos nossa conversa sobre fotografia e a família, Graça repetiu algumas vezes a rápida passagem do tempo e o crescimento acelerado dos seus filhos. Ainda me mostrou outras fotografias de suas netas e falou da importância de elas estarem na escola. A família, apesar da humildade, era rica em afeto e amor entre todos ali. Eu me lembrava com muita nitidez da senhora sua mãe nos cultos intermináveis na casa do meu tio-avô. Ficava mais claro que realizar o Recordatório aqui no Riacho das Pedras me traria muitas recordações da minha própria infância. Graça ainda me falou que gostava muito de fotografia sim, mas enfatizou que a única fotografia que ela não gostava era as fotografias de “santinhos de sétimo dia”. Disse-me que já chegou a recusar algumas lembranças de sétimo dia na sua casa. Ela afirmou que era mórbido e que ela não gostava de forma alguma.
Depois de explicar como funcionava a polaroide, tivemos de escolher quem seria fotografado. De pronto, ela recusou-se a ser fotografada e sua filha, idem. Seus filhos também se recusaram imediatamente. Eu propus fotografar a casa. Ela me perguntou se tinha que pagar algo, eu disse que não. Diante de tanta recusa, coloquei-me para fotografar a casa. Quando me afastei, ela se levantou e se colocou diante da casa juntamente com a sua filha. Pareciam irmãs. Fotografei a casa e elas se alegraram com a imagem. Uma vista que surpreendeu com os coqueiros e a casa que sempre esteve ali, mas agora é retratada de maneira diferente.
Agradeci pela troca e pela atenção. Graça ainda me ofereceu um pouco de arroz da terra para levar para minha mãe. Agradeci mais uma vez e segui na mesma estrada.
O caminho se tornou mais uma vez cercado apenas de verde nos dois lados. O sol havia subido um pouco mais e o calor era latente. Caminhei observando aquele bananal sem fim que oferecia uma incrível variação de verdes.
Depois de uma pequena caminhada, encontrei mais uma casa. Parei como quem procura ver alguém e, mais uma vez, fui reconhecida. Era Rubenita, uma das filhas da Dona Edite. De pronto, ela me saudou e perguntou se eu não queria um copo de água.
Aceitei, apesar de portar comigo a minha garrafinha de água. Mas vi ali uma forma de chegar e coletar mais uma peça para o Recordatório. Entrei pelos fundos da casa. Acompanhei a anfitriã, que me mostrou o seu fogão de lenha, trabalhando intensamente no feitio do almoço.
Após beber água, falei do motivo me levava ali. Eu estava procurando fotografias antigas e gostaria de saber se ela tinha alguma. Rubenita disse que sim. Rubenita tem mais ou menos a minha idade e quando éramos crianças, tínhamos alguma aproximação pela igreja da qual fazíamos parte. Eu deixei a igreja há muito tempo, logo após completar dezoitos anos, mas ela continua ainda hoje na igreja. Surpreendi-me quando ela pediu que a sua filha fosse buscar a fotografia para me mostrar.
Sua filha entregou-me a imagem e ela afirmou ser a única que tinha em casa. Era uma fotografia de seus pais – Dona Edite e seu esposo Irmão Zeca Mestre. Ao olhar aquela imagem senti o olhar da Dona Edite. Era uma mulher muito meiga e delicada. Ela faleceu há anos e sempre nos tratou com muito carinho e doçura. Rubenita sempre me pareceu uma pessoa muito fria e distante, mesmo quando éramos crianças e eu me dava melhor com suas irmãs Elizete e Eliana. Porém, a conversa foi se esticando e para Rubenita, rever aquela imagem também foi algo que a sensibilizou. Em pouco tempo, ela estava relatando como foi cuidar da mãe em seus últimos dias. Percebi que a situação em que eu me coloco como ouvinte havia se estabelecido. Eu a deixei falar sem limites e ouvi com atenção o seu relato. Tanta dor ainda com a morte da sua mãe. Uma ferida ainda aberta. Seu pai mora na sua casa de sempre, ao lado da dela. Ele está “perdendo a razão”, como ela me disse. Mora sozinho, mas é a Rubenita e a sua filha que lhe cuidam diariamente. Ela me contou que foi na sua presença que a sua mãe se foi. Depois de dias no hospital, não havia mais saída para um possível tratamento médico. Aqui no Ceará, costumamos dizer que “ela estava desenganada pelos médicos”, ou seja, não podiam fazer mais nada e a enviaram para casa ainda consciente. Passaram a esperar o seu falecimento em poucos dias. Diante de toda a família reunida, depois de conversar muito com Rubenita e ouvir o hino 17 da Harpa Cristã, ela expirou, deitada em uma rede. Quando Rubenita me relatou a sua partida, a vi criança, frágil e entregue diante de mim na minha companhia de ouvinte. Tanta emoção contida naquele relato e todas aquelas lembranças que foram acordadas com aquela fotografia...
A fotografia que iria deixar veio para quebrar um pouco o silêncio que nos tomou depois do seu relato. Ofereci a fotografia e ela se recusou a aparecer. Sua filha, também muito tímida, não quis sair na imagem. Eu disse que poderia ser da sua casa e ela aceitou. Me afastei um pouco e fiz a fotografia. Não ficou muito bem, acho que o obturador estava muito fechado ou o filme estava perto de acabar e a imagem saiu muito escura, mas ela gostou assim mesmo. Achou interessante aquela impressão diante os seus olhos.
Agradeci a confiança, a atenção, e o tempo compartilhado e prossegui no meu caminho de retorno. Depois daquele relato, eu me sentia cansada e fui retornando devagar para casa. Mais sensibilizada que cansada. Talvez por isso, cada coleta do Recordatório é uma energia grande que é desprendida. Não é física, é mental mesmo.
Retornei no mesmo caminho. O ônibus escolar passou por mim, cheio de crianças que hoje têm um transporte e podem estudar na cidade mais próxima, Redenção, algo que há alguns anos era impossível, de modo que o destino de todos os que aqui moravam era trabalhar na terra.